20/08/2012



‎"E é tão raro encontrar gente para viver. Gente que não valha papéis nem metais. Gente que valha a pena. Gente rara. Gente que olhe com os olhos e toque com a pele. Gente que não precise de intermediários para viver. Gente sem vendedores dentro. Gente tão gente que não precisa de publicidade, de anúncios ou de negociações. Gente que é uma pechincha apesar de ser uma raridade. Gente sem etiqueta. Gente sem preço. Terás capital para a comprar?" 



Pedro Chagas Freitas

16/08/2012

"Quem me quiser há-de saber as conchas
a cantiga dos búzios e do mar.
Quem me quiser há-de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.

Quem me quiser há-de saber as fontes,
a laranjeira em flor, a cor do feno,
a saudade lilás que há nos poentes,
o cheiro de maçãs que há no inverno.


Quem me quiser há-de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.

Quem me quiser há-de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.

Quem me quiser há-de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente."

Rosa Lobato de Faria

12/08/2012

Memória(s) perdida(s)




Recontar tudo, mais uma vez. Omitir passagens, reinventar memórias de que já não há memória. Talvez tivesse sido assim…
Preencher os silêncios e os vazios com um passado que já foi e talvez não tenha sido assim. Já não interessa a verdade. Mentimo-nos com o que podia ter sido… ou talvez tenha sido assim. Não há tempo para os pormenores que se desvanecem nas histórias encadeadas e confundem-se personagens, enredos, lugares e tempos.
O passado é apenas a reconstrução da memória e não há certezas. Um café tomado de manhã ou à noite, um nome ou apelido, um beijo na praia ou à porta de casa… Lençóis desfeitos por corpos ávidos de desejo ou apenas inquietos pela solidão… Um filme à meia-noite ou uma música dançada na rua… Um sorvete saboreado a dois, quem quer que fosse… Um livro partilhado, ou uma carta enviada, ou talvez recebida… Flores espalhadas pela casa, ou entregues em mão… Um sorriso, ou uma gargalhada… Uma lágrima, ou uma palavra calada…
A memória falha e é reconstruída agora com mais doçura… Metade imaginação, metade realidade… mas dói menos quando não se recorda. Inventa-se para não lembrar. Não somos o que fomos, nem sombra disso. É o que somos agora a recordar uma frase ou um gesto que nos faz sorrir ou chorar. Talvez não tenha sido exactamente assim… mas precisamos agora que o seja. E o que foi, que interessa se foi assim ou de outro modo?! É agora que vivemos a memória, por isso temos o direito de a embelezar ou atenuar. Talvez não tenha dito ou ouvido um «amo-te», talvez tenha sido invenção ou o é agora. Que diferença faz?!
Pode ter sido pior… mas agora não o é. Até parece que foi agradável… não deve ter sido tão mau como pensamos recordar. Porque não podemos pensar que foi melhor?! Porque não podemos viver com a recordação do que queremos que tenha sido?! As memórias são nossas e de mais ninguém. Fomos nós que sentimos e sabemos o que realmente foram. Se são nossas, podemos reinventá-las… como podiam ter sido.

(Em tempos conheci uma senhora que desabafava as queixas do marido… até ao dia em que ele desapareceu do mundo dos vivos. Descobriu então que tinha uma conta bem forrada que lhe permitia viver bem a sua velhice. E as memórias sofreram um revés… o falecido marido passou a ser o que ela quis que tivesse sido… Reconstruiu as suas memórias a partir daí e a vida era muito mais simples.)

Irene Ermida