- Aqui tens – estendeu-lhe o livro de capa preta onde se podia ver uma forma hexagonal colorida. - Abre-o só quando te sentires forte. - E se o abrir antes? – Corres o risco de ficar ainda mais fraco (dirigindo-se para a lareira para onde atirou ramos de alecrim e mais umas achas de lenha). De cócoras, observou as labaredas imponentes que se reflectiam nos seus olhos cor de mel e que reluziam sob os longos cabelos escuros, abandonados sobre o ombro direito.
Não era alta nem baixa, nem gorda nem magra, nem feia nem bonita. Era uma mulher. Apenas. Dois anos antes trocara a capital pela aldeia, onde tinha herdado umas ruínas que, em tempos, já tinham sido lugar cheio de vida. Trocara as roupas de executiva de sucesso (seja lá o que isso for!) por uns jeans, uma camisola de algodão e, ora uns ténis no inverno, ora uns chinelos no verão. Trocara reuniões e viagens por passeios à beira mar e folhas escritas que se acumulavam num canto do pavilhão. As paredes exteriores (e únicas) isolavam-na das pessoas, do calor, do frio, do mundo. Não se tornara eremita. Optara por si, deserta em si mesma e tão cheia de vida que seria insuportável partilhá-la diariamente com os outros. Insuportável para os outros. Não para ela. Continuava permeável ao que se passava, bem informada sobre tudo o que a rodeava. Tinha voz, opinião e decisão. Acção também, quando assim entendia. Não, não era uma solitária triste. Era uma solitária preenchida. De memórias, de conhecimento, de experiência. Não tinha idade. Tinha apenas tempo. Abstracto e concreto. Mantinha seletivamente todos os elos a quem e ao que queria. Livre. Livre de ser e de não ser, de estar e de não estar. De sentir, principalmente. E sentia livremente.
Encolheu os ombros e trocou o livro de mão, ansioso. Queria abri-lo. Ver o que estava dentro. Era um livro velho? Com história? Imaginou-o cheio de letras, de palavras, de sinais de pontuação, onde o sentido se perdia nas folhas amareladas. Havia uma história. Há sempre uma história em cada livro. Queria abri-lo, folheá-lo, encontrar o sentido. Dar-lhe sentidos em cada página, em cada ponto final. Queria transformar vírgulas em dois pontos. Acrescentar reticências. As palavras dela pesavam-lhe. Olhava pela janela do comboio que o levava ao ponto de partida. Ou de chegada. Não interessava. Levava-o ao ponto de si mesmo. Imaginou o livro em labaredas, onde os olhos de mel se reflectiam. Não abriu o livro. Queimava-lhe as mãos, a curiosidade, a ânsia de saber o que ele continha. Não o abriu. As palavras dela pesavam-lhe (abre-o só quando te sentires forte!), ressoavam ao longe como um silvo de um comboio antigo movido a carvão. Quis atirá-lo pela janela e perdê-lo. Não conseguiu. Esperava ele um milagre em que nunca acreditara? Era o mistério que o detinha. Qualquer livro encerra um mistério.
Sentou-se do lado da janela. Partiria dentro de cinco minutos. Ao olhar para o lado viu um livro de capa preta com uma figura hexagonal colorida. Olhou em volta e quis avisar quem ali o tinha esquecido. O comboio estava vazio. (Uma boa maneira de passar a viagem). Acomodou-se melhor, olhou para a estação, deserta. Não havia mais passageiros. Uma viagem solitária. - Melhor! Assim posso ler calmamente. Esperou. O comboio partiu à hora certa. Observava o livro mas, por qualquer razão inconsciente, não o abriu. Esquivava-se. Levantou-se e sentou-se duas ou três vezes. Sentia o mistério. Sabia que não iria resistir muito tempo. Adormeceu. Acordou. Três vezes. O livro inanimado continuava ali, a seu lado. Pegou nele com cuidado, como se receasse que, ao abri-lo, não fosse capaz de o fechar novamente. Admirou-o de todas as perspectivas e, num ato de coragem repentino abriu-o. Primeiro virou a capa. Uma página em branco. Não era seu hábito começar pelo princípio. Folheou. Outra página em branco. Estranhou o facto. Folheou então uma a uma todas as páginas. Leu a história de uma vez só. A sua história. A história dela. Do outro e do outro e dos outros que são cada um. O branco das páginas transformava-se aos seus olhos em letras, palavras, sinais de pontuação à medida que avançava na leitura. Escreveu a sua história à medida que a foi lendo. A sua e de qualquer um num livro em branco.
Irene Ermida
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