Recém-sentada à minha secretária, irrompe uma colega no gabinete e comunica-me que o J. estava na aula de Português mas afirmava que, na primeira oportunidade, ia fugir da escola, que se matava, que ninguém o podia obrigar a estar ali…
O peso da responsabilidade obriga-me desde há uns tempos a edificar uma imunidade à minha volta, sob pena de me estilhaçar em fragmentos, tais os dramas humanos que, por vezes, se me deparam, agravados pelo facto de envolverem jovens cheios de ambições quiméricas e oníricas, na flor da idade, com o direito à totalidade da vida!
Levantei-me da cadeira (que, insisto, me provoca dores nas costas!), ainda preguiçosa pelo acordar antecipado de que não recordo o motivo, dirigi-me à sala em passos firmes, mais pelo arrepio de frio e chuva, do que pela vontade de assumir a figura adequada às funções. Bati à porta e solicitei autorização à colega para que o J. viesse comigo.
De mãos nos bolsos, o olhar cabisbaixo, caminhou ao meu lado. Perguntas vagarosas soltaram-se após ter anunciado suavemente: Vamos conversar um bocadinho… De onde és?... Tens irmãos?... E os teus pais, que fazem?...
Chegada ao gabinete dispunha de uma porção de informações que não permitiam penetrar naquela mente tão inundada de angústias.
Senta-te aí. Tira as mãos dos bolsos. Carinhosa mas firmemente, sem descuidar a minha postura de educadora, sondei-o… Que queres fazer da tua vida? - Comecei.
Após uma breve troca de palavras, em que o J. se recatava em monossílabos e pouco mais, dando a conhecer a sua curta história (pai que trabalha no campo, mãe doméstica, 3 irmãos de 18, 20 e 21 anos sem terem completado estudos, sem trabalho, por desleixo ou teimosia), perguntei: Sentes-te revoltado? – Sim.
As palavras fluíram então, sólidas mas carinhosas, entre conselhos e incentivos… As lágrimas soltaram-se daqueles olhos vazios ao fim de alguns minutos. Saiu, de mãos nos bolsos novamente, mais aliviado, comprometendo-se afirmativamente, sim, ia estudar, vinha para a escola, não ia faltar mais. O J. tem 13 anos e frequenta o 6º ano.
Há umas semanas atrás, sentada na cadeira de um auditório com cerca de 300 pessoas, ouvindo os responsáveis máximos pela educação, sonhei quando ouvi os números! Um paraíso, afinal!
O J. irá à escola durante uns tempos, principalmente porque o lembrei que dispõe de uma refeição em condições, do convívio dos colegas e dos professores, dos computadores, da biblioteca, do desporto…
Não pude alimentar-lhe mais o sonho, de que acorda diariamente quando entra em casa e vive o mundo real com problemas de que não tem culpa e que o impedem de ser menino!
3 comentários:
Irrealidades, só mesmo as desses senhores que em auditórios apresentam os números das suas efabulações de gabinete.
Para o resto que contas, podes bem tirar o prefixo e usar o plural... São verdades do nosso quotidiano. O seguimento dessas histórias pode ser muito diverso e é, muitas vezes, desconhecido.
olá
Sou uma estreante nestas coisas. No entanto,ao navegar por esta página, não podia deixar de elogiar a forma como esta amiga sabe transmitir-nos as sensações das vivências do quotidiano.Valeu pela beleza poética dos textos que escreve e pela sensibilidade refinada que a leva a saber entender os outros e a ajudar a resolver os seus problemas. Beijo
gostei muito e tem mesmo qualidades... acho que deve começar a escrever a sério.
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