05/12/2006

(IR)realidades 1

Recém-sentada à minha secretária, irrompe uma colega no gabinete e comunica-me que o J. estava na aula de Português mas afirmava que, na primeira oportunidade, ia fugir da escola, que se matava, que ninguém o podia obrigar a estar ali…

O peso da responsabilidade obriga-me desde há uns tempos a edificar uma imunidade à minha volta, sob pena de me estilhaçar em fragmentos, tais os dramas humanos que, por vezes, se me deparam, agravados pelo facto de envolverem jovens cheios de ambições quiméricas e oníricas, na flor da idade, com o direito à totalidade da vida!

Levantei-me da cadeira (que, insisto, me provoca dores nas costas!), ainda preguiçosa pelo acordar antecipado de que não recordo o motivo, dirigi-me à sala em passos firmes, mais pelo arrepio de frio e chuva, do que pela vontade de assumir a figura adequada às funções. Bati à porta e solicitei autorização à colega para que o J. viesse comigo.

De mãos nos bolsos, o olhar cabisbaixo, caminhou ao meu lado. Perguntas vagarosas soltaram-se após ter anunciado suavemente: Vamos conversar um bocadinho… De onde és?... Tens irmãos?... E os teus pais, que fazem?...

Chegada ao gabinete dispunha de uma porção de informações que não permitiam penetrar naquela mente tão inundada de angústias.

Senta-te aí. Tira as mãos dos bolsos. Carinhosa mas firmemente, sem descuidar a minha postura de educadora, sondei-o… Que queres fazer da tua vida? - Comecei.

Após uma breve troca de palavras, em que o J. se recatava em monossílabos e pouco mais, dando a conhecer a sua curta história (pai que trabalha no campo, mãe doméstica, 3 irmãos de 18, 20 e 21 anos sem terem completado estudos, sem trabalho, por desleixo ou teimosia), perguntei: Sentes-te revoltado?Sim.

As palavras fluíram então, sólidas mas carinhosas, entre conselhos e incentivos… As lágrimas soltaram-se daqueles olhos vazios ao fim de alguns minutos. Saiu, de mãos nos bolsos novamente, mais aliviado, comprometendo-se afirmativamente, sim, ia estudar, vinha para a escola, não ia faltar mais. O J. tem 13 anos e frequenta o 6º ano.

Há umas semanas atrás, sentada na cadeira de um auditório com cerca de 300 pessoas, ouvindo os responsáveis máximos pela educação, sonhei quando ouvi os números! Um paraíso, afinal!

O J. irá à escola durante uns tempos, principalmente porque o lembrei que dispõe de uma refeição em condições, do convívio dos colegas e dos professores, dos computadores, da biblioteca, do desporto…

Não pude alimentar-lhe mais o sonho, de que acorda diariamente quando entra em casa e vive o mundo real com problemas de que não tem culpa e que o impedem de ser menino!

Não vou cruzar os braços e farei o que for possível para que o J. seja mais uma criança a usufruir das mesmas oportunidades que tantas outras, arbitrariamente, foram recompensadas pelo destino.

3 comentários:

Maria Manuel disse...

Irrealidades, só mesmo as desses senhores que em auditórios apresentam os números das suas efabulações de gabinete.
Para o resto que contas, podes bem tirar o prefixo e usar o plural... São verdades do nosso quotidiano. O seguimento dessas histórias pode ser muito diverso e é, muitas vezes, desconhecido.

Anónimo disse...

olá
Sou uma estreante nestas coisas. No entanto,ao navegar por esta página, não podia deixar de elogiar a forma como esta amiga sabe transmitir-nos as sensações das vivências do quotidiano.Valeu pela beleza poética dos textos que escreve e pela sensibilidade refinada que a leva a saber entender os outros e a ajudar a resolver os seus problemas. Beijo

Anónimo disse...

gostei muito e tem mesmo qualidades... acho que deve começar a escrever a sério.