25/10/2010

Inversão de percurso

 

«Sim, seria fascinante envelhecer ao teu lado. Mas, ainda assim, prefiro rejuvenescer ao lado de outra.»

Pedro Chagas Freitas


O que era, deixou de ser, se é que alguma vez o foi. Tudo estava em causa agora. Olhava-a mas já não via o brilho nem a graciosidade de outrora. Acordava a seu lado diariamente há anos e, de um momento para o outro, não encontrava nenhuma razão para isso. Sentia-se vazio. Faltava alguma coisa. 

No seu grupo de amigos, ouvira falar da rotina e do desgaste das relações, do tédio e do desmazelo, da falta de amor e de paixão... mas sempre pensou que isso lhe passava ao lado. Eram banalidades. Estava bem com a família que tinha. Tudo estava no lugar certo. Não havia problemas, nem discussões. Tudo se passava segundo a ordem natural das coisas. Tinham os seus dias piores mas tudo passava.

E agora... de repente, sentia-se oco de sensações e sentia falta. De quê? De tudo! E não sabia como lidar com isso. Eram sensações e anseios contraditórios que o punham mal-disposto, resmungão, impaciente. É verdade que havia falta de atenção e afecto mútuo, mas compreendia as razões, pois, não só os filhos, mas  também agora os pais de ambos, exigiam tempo e disponibilidade.

Queria falar-lhe de si, dos seus anseios e ansiedades, dos seus objectivos e frustrações... mas como? Não era só a falta de tempo, mas antes a barreira que se interpôs entre eles. Nada tinham a dizer um ao outro. Era como se o muro de Berlim tivesse mudado de sítio... via o que se passava do outro lado da fronteira, mas não podia agir. 

Não, não queria pensar e esforçava-se por acreditar que tudo estava bem, porém, a inquietação aumentava de dia para dia. Tentou surpreendê-la de várias maneiras para se convencer a ele próprio de que era preciso fazer alguma coisa. Mas cada gesto ou acção distanciava-o cada vez mais de si próprio. Já não sabia quem era. Sim, era um actor a desempenhar o seu papel na perfeição.

Adormecia na expectativa de acordar no dia seguinte num cenário diferente. (...)





24/10/2010

O Verdadeiro Gesto de Amor


«Aquilo que de verdadeiramente significativo podemos dar a alguém é o que nunca demos a outra pessoa, porque nasceu e se inventou por obra do afecto. O gesto mais amoroso deixa de o ser se, mesmo bem sentido, representa a repetição de incontáveis gestos anteriores numa situação semelhante. O amor é a invenção de tudo, uma originalidade inesgotável. Fundamentalmente, uma inocência. »

Fernando Namora, in 'Jornal sem Data'









Fonte: www.citador.pt

20/10/2010




Os muros existem por um motivo. 
Dão-nos a oportunidade de mostrarmos até que ponto desejamos alguma coisa. 

(Randy Pausch)

18/10/2010

VI



um relógio que não marca o tempo esquecido entre milhares de sombras indistintas como se um arco-íris gritasse de dor entre os ramos entrelaçados de uma qualquer árvore erguida no fundo de uma avenida deserta de gente e de palavras enquanto o mundo gira e se descobrem novas galáxias para onde voam pensamentos e desejos inoportunos clandestinos  pérfidos que não engolem mentiras nem verdades porque a verdadeira razão não existe nem o universo nem o rosto que surge nos meus olhos.

V



apago as luzes e cerro as janelas numa escuridão cega e muda em que se funde um azul etéreo e o silêncio degolado por soluços e lágrimas diz que já é tarde para lamentações e queixumes de nada vale atrasar o passo perante a voracidade das emoções que agonizam de tanto ardor mas vem a chuva e a lua anoitece tão determinada que parece uma criança adormecida num canto de uma rua qualquer só porque tem sono e não precisa de mais nada nem ninguém se importa com ela assim indefesa mas livre.

11/10/2010

Edgar Morin : "Les crises génèrent des forces créatrices"

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«Toute crise porte en elle un risque et une chance, affirme le sociologue et philosophe. Le risque, vraisemblable, de voir le marasme s’amplifier. La chance, peut-être, de nous réinventer pour construire un avenir meilleur. Son nouveau livre, La Voie, est une invitation à réveiller l’espoir, la fraternité, l’amour.»

http://www.psychologies.com/Planete/Societe/Articles-et-Dossiers/5-raisons-de-croire-en-l-avenir/Edgar-Morin-Les-crises-generent-des-forces-creatrices
...

(«As crises geram forças criativas»

Qualquer crise comporta em si um risco e uma oportunidade... O risco, verosímil, de ver o marasmo ampliar-se. A oportunidade, talvez, de nos reinventarmos para construir um futuro melhor.)

10/10/2010

IV

sem ponto de referência e numa espécie de espiral absorvo cheiros que me elevam num rodopio em que me enrosco e de onde não quero sair num vácuo deformado pela límpida tensão de cavidades impossíveis impressas em cada ruga de um rosto incompreensível em cada instante em cada nervura mordo a luz que me há-de perder sobre folhas de outono que perdem a dimensão de tão irreais que são amontoadas numa caverna tortuosa de desejos sem proporção porque não mensuráveis por homens nem deuses como nos tempos do nada.

Irene Ermida

III

todos os dias sai o barco à deriva sem porto sem capitão rumo a destinos inconfundíveis de recordações que já não são nem nunca foram e procura a realidade que não é nem nunca foi crepitando surdamente entre paredes invisíveis imersas em águas repetidas de traços e de margens que não são nem nunca foram porque os significados únicos alastram em todas as direcções e não há força nem poder que as contenha e na separação de possibilidades insuportáveis não há nada que se mantenha eterno e o infinito é ilusão de quem espera a insignificância de pormenores.

Irene Ermida

II

são linhas e formas cozidas à força de paladares isolados num desprendimento da alma que não existe mas permanece num universal conceito de movimentos indispensáveis à vida que se eleva num salto e nos puxa para dentro de nós e fica lá ancorada no fundo do pensamento e desperta a dúvida demorada em contraposições e suposições remotas dando sinal inequívoco às gerações que afinal tudo é circular e contínuo e somos apenas prolongamento uns dos outros e deitados quietos e encolhidos crescemos na noite e no dia ao som da harpa mais milenar de todas as harpas sem nomes mudos e anónimos.


Irene Ermida

I

arranco a página em branco e dobro-a em mil partes até desaparecer esse vazio de palavras e de silêncios que falam até doer os ossos num ímpeto controlado de gestos e de sensações que perduram na milésima porção de sonhos de tremores de ventos esquecidos porém surpreendentes e violentos que arrasam montanhas e planícies longínquos de tão longe e de tão perto que se vêem e sentem nas pontas dos dedos estendidos até à lua que ofusca olhares e dizimam a inocência de um lençol branco ou preto macio de pérolas e de sedas de sentidos perdidos estáticos manchados de gotas de suor e de amores passados e futuros.



Irene Ermida